AGRADECIMENTO

Agradeço ao Professor Doutor Francisco Contente Domingues, meu orientador e conceituado especialista nas matérias aqui abordadas, pela forma atenta e exigente como orientou a minha dissertação. As suas palavras de incentivo, a sua disponibilidade e abertura de espírito, o seu profundo saber histórico, o seu apurado sentido crítico e a sua capacidade de diálogo tiveram um peso determinante neste trabalho.
Foi para mim um privilégio trabalhar sob a sua direcção.


APRESENTAÇÃO

O « LIVRO DA FABRICA DAS NAOS» DE FERNANDO OLIVEIRA. PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS DE CONSTRUÇÃO NAVAL

Saudações
Senhor Professor Doutor António Dias Farinha (Presidente do juri)
Senhora Professora Maria Isabel Vicente Maroto (Arguente)
Senhor Professor Doutor Viriato Soromenho Marques (Arguente)
Senhor Professor Doutor Francisco Contente Domingues (Orientador)
Caros professores e alunos do mestrado em História Marítima
Caros colegas e amigos

   Apresentação

   Nesta dissertação procuro fazer um retrato de síntese da prática construtiva das naus da Carreira Índia na viragem do século XVI para o século XVII.
   O trabalho nasce de uma colaboração no projecto “ Reconstrução Virtual de uma Nau Quinhentista”, que está a ser desenvolvido no Centro de Engenharia e Tecnologia Naval do Instituto Superior Técnico, em parceria com o Nautical Archaeology Program do Departamento de Antropologia da Texas A&M University.
   No último trimestre de 2007, realizei um primeiro modelo de uma nau da Carreira da Índia, em madeira, à escala 1/48, que serviu para testar e corrigir um conjunto de pressupostos dimensionais e geométricos que foram depois incorporados num modelo, usado em testes laboratoriais e que foi realizado pelo Arsenal do Alfeite.
   No início de 2008, iniciei a construção de uma segunda versão da nau, em estilo de arsenal, no qual se representa toda a estrutura do navio (quilha, cadaste, roda de proa, cavernas braços….)
   A produção destes modelos conduziu-me ao estudo da arqueologia e da arquitectura dos navios nos séculos XVI e XVII e a perspectivar os problemas da construção naval segundo uma lógica orientada por interesses essencialmente construtivos. A minha preocupação central é encontrar, pela via da pesquisa documental, respostas concretas para problemas técnicos que emergem e desembocam na construção de modelos de embarcações à escala.
   Esta dissertação é o repositório informativo das investigações efectuadas.
   O texto privilegia a leitura do Livro da Fábrica das Naos de Fernando de Oliveira, (circa 1580), complementando a sua análise com outros textos sobre construção naval coevos, com estudos historiográficos, com iconografia e com achados arqueológicos.
   Para além da obra referida, a prática construtiva de embarcações para a carreira da Índia foi estudada no Livro Primeiro da Architectura Naval, de João Baptista Lavanha, (circa 1600);
          • nas duas traças de naus da Índia que Gonçalo Roiz e Sebastião Temudo co-assinam com João Baptista Lavanha (em Março de 1589);
          • no Livro de Traças de Carpintaria, de Manuel Fernandes, (1616);
          • n’ O Livro Nautico, ou meio pratico de construção dos navios e galés,
          • no Memorial de varias cousas importantes, (circa 1590)
          • e nas Coriosidades de Gonçalo de Sousa, (docs. de 1570 a 1630).
   Refira-se que de todos os textos enumerados, o Livro da Fabrica das Naos é simultaneamente o mais denso do ponto de vista das considerações de teor epistemológico e o mais rico em termos de legado informativo e técnico no que respeita à descrição do processo de construção do casco de uma nau.
   Como bibliografia de enquadramento, usei principalmente os trabalhos de Henrique Lopes de Mendonça, de Éric Rieth, de Francisco Contente Domingues e de Luís Filipe Vieira de Castro.
   No que respeita ao estudo de achados arqueológicos, debrucei-me sobre uma embarcação encontrada nas Seychelles, em 1970 e que poderá corresponder à nau Santo António, que naufragou em 1589 e sobre os achados de São Julião da Barra, que tudo indica pertencerem à nau Nossa Senhora dos Mártires, que ali naufragou em Setembro de 1606.
   Esta dissertação articula-se em dois momentos diferenciados. A primeira parte incide sobre a vida e obra de Fernando Oliveira e a segunda faz o enunciado sequencial da prática construtiva.
   Fernando Oliveira deixou-nos uma obra pioneira e pluridisciplinar, que abrange os domínios da Gramática, da Estratégia Militar e da Construção Naval. Nasceu por volta de 1507 e é provável que ainda estivesse vivo em 1585.
   A sua biografia foi recomposta por Henrique Lopes de Mendonça, no final do século XIX, mas há aspectos que continuam por aclarar, nomeadamente as fontes da sua formação no domínio da navegação e da construção naval. Fernando Oliveira, que Luís de Albuquerque apelidou de “genial aventureiro insubmisso”, foi clérigo, professor, diplomata, mas também piloto de galés e aprendiz de construção naval em vários estaleiros europeus e do Norte de África.
   Publicou em 1536 a Gramática da Lingoagem Portuguesa (a primeira do género a ser editada entre nós). Em 1555 publica a Arte da Guerra do Mar (o primeiro e o único tratado português sobre estratégia militar naval). Na década de 70 escreve a Ars Náutica, de âmbito geral sobre as problemáticas do mar e da navegação. Na década de 80 escreve dois textos sobre História de Portugal e o Livro da Fábrica das Naus, primeiro tratado português na matéria e fonte primeira deste estudo sobre princípios e procedimentos de construção naval.
   Os intérpretes de Fernando Oliveira tendem a focalizar a sua obra numa perspectiva hermenêutica de carácter fragmentário, privilegiando leituras de índole sequencial (aquelas que percorrem ordenadamente o texto de fio a pavio, chamando a atenção e aclarando determinados pontos do mesmo) e de segmento (as que isolam e problematizam uma porção temática mais ou menos abrangente). Neste trabalho, procurou-se olhar para o Livro da Fábrica das Naos a partir da identificação de alguns eixos norteadores capazes de conjugar, numa unidade simultaneamente sistemática e sintética, a diversidade e a riqueza do seu legado problemático.
   Um primeiro eixo interpretativo foi consignado no programa estruturante que vai da “crítica da prática à demanda de um sistema”. Conjugando a prática da crítica com o imperativo transformador, o autor apresenta um retrato global da construção naval em que esta aparece como uma actividade deficitária, onde importa substituir o domínio do casuístico, do desordenado, do sombrio e do complexo pela regulação integradora e sistematizante da norma, da clareza e da simplicidade.
   Um segundo ponto nuclear pode encontrar-se no recurso ao paradigma matricial do biológico para explicar a génese, a nomenclatura, a morfologia e o programa de desenvolvimento tecnológico das embarcações.
   Um terceiro eixo problemático reside na ideia de progresso. Os navios e a sua construção partilham, com os restantes fenómenos humanos, as condicionantes da possibilidade ou não da melhoria qualitativa. Apesar de Oliveira avaliar negativamente a prática dos construtores da Ribeira, considera que Portugal protagoniza um momento privilegiado na histórica da evolução do navio. No entanto, os construtores só poderão continuar na dianteira do progresso e contrariar as tendências decadentistas, que já se prenunciam, introduzindo na lógica da construção pelo menos três imperativos categóricos: conformar o saber e a prática com os processos e procedimentos já aprovados, introduzir mecanismos de inovação e de aperfeiçoamento na prática do ofício e fundamentar a performance qualitativa da construção numa lógica de desenvolvimento intelectual e ético, de índole pessoal.
   Na segunda parte da dissertação, antecedemos a entrada no estaleiro com uma análise da valência da iconografia, da documentação técnica, dos achados arqueológicos e dos modelos à escala para a reconstrução da nau da Índia.
   Da reflexão sobre a iconografia conclui-se que a utilização das representações de navios deve ser antecedida de um trabalho sistemático de enquadramento metodológico, no sentido de eliminar os ruídos informativos que, habitualmente, tendem a interpor-se entre o objecto que foi representado e a sua representação.
   Sobre a documentação técnica, importa reter que Portugal dispõe de uma notável colecção de documentos, aguardando-se com expectativa a edição da Ars Nautica, cuja leitura continua vedada àqueles que não dominam o latim.
   Os achados arqueológicos são o testemunho mais fidedigno do modo como efectivamente se construía. Representam, no concreto, soluções viabilizadas e ultrapassam, neste sentido, o que os textos eruditos podem reportar como mera intenção. São infelizmente poucos e apenas três preservam a ossada do navio (a nau Santo António, a nau Nossa Senhora dos Mártires e uma nau recentemente descoberta na Namíbia, provavelmente a “ Bom Jesus”, que não foi, até ao momento, objecto de estudo científico com resultados publicados).
   Verificou-se, nos dois primeiros casos, a coincidência entre a morfologia do remanescente arqueológico e os dados técnicos documentais. Na nau das Seycheles, o posicionamento das cavernas sobre a quilha é muito semelhante ao que Fernando Oliveira preconiza para o espaço a deixar entre duas cavernas consecutivas. A nau de São Julião da Barra também segue o que é preconizado por Oliveira: as marcações encontradas nas cavernas demonstraram que esta tinha três cavernas mestras e que o arrepiamento das secções transversais entre a casa mestra e as almogamas é idêntico ao que refere o Livro da Fabrica das Naos.
   Sobre os modelos aplicados ao estudo da arqueologia do navio, salienta-se que não chegou até nós nenhum modelo fidedigno de uma nau da Carreira da Índia e os modelos alusivos à época, construídos modernamente e que podem ser vistos em instituições nacionais de referência, como o Museu de Marinha, inscrevem-se num patamar representativo com pouco fundamento arqueológico.
   A análise do processo construtivo da nau começa com a escolha dos materiais a utilizar, sendo o sobreiro a madeira mais corrente no cavername, enquanto o pinheiro manso serve essencialmente para o forro do casco nas obras vivas e o pinheiro bravo para as porções do navio acima da linha de água. Os pregos são de ferro; a cordoalha, tal como o calafeto, quer-se de estopa; as velas serão de linho e para untar o navio usa-se o breu.
   A nau da Carreira da Índia é pensada e constrói-se a partir dos pressupostos “esqueleto primeiro”, seguindo o método da baliza mestra, almogamas, armadouras e com controlo do levantamento e do recolhimento do fundo.
   A geometrização do casco faz-se a partir de um conjunto de pressupostos geométricos elementares, baseados na aplicação de um quadro simples de proporcionalidades, definido a partir do comprimento da quilha.
   O comprimento da quilha, expresso em rumos, opera como unidade arquetípica de toda a sequência da narrativa geométrica e permite definir, de forma directa e indirecta, todos os restantes quadros referenciais necessários para definir, na globalidade, a narrativa geométrica da nau.
   Para traçar os contornos da baliza mestra, Oliveira privilegia a figura circular. As restantes balizas, de ambos os lados da mestra até às almogamas da vante e da ré, são uma replicação da geometria essencial da baliza mestra, modificada com recurso a diagramas de redução simples, os graminhos, cuja acção incide principalmente ao nível do levantamento do fundo e do recolhimento da boca.
   No total, a porção de cavernas cujas formas são controláveis através dos diagramas de redução é ligeiramente superior a metade do comprimento do navio.
   A historiografia considera que o trabalho de modelação do casco fora da barreira arquitectónica das almogamas era concretizado recorrendo a armadouras. Oliveira defende a utilização dos graminhos para gerir as formas volumétricas do casco após as almogamas, mas infelizmente nada nos diz sobre a tipologia de graminho utilizado, deixando em aberto, neste como noutros quadrantes hermenêuticos da prática construtiva, o desafio de prolongar a investigação na esteira de uma leitura necessariamente pluridisciplinar que conjugue, numa perspectiva dialéctica de significação, a interpretação dos textos coevos, a análise dos achados arqueológicos, o estudo da iconografia e a construção de modelos à escala.

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

7 de Janeiro de 2010


RESUMO E PALAVRAS-CHAVE

Título: O Livro da Fabrica das Naos de Fernando Oliveira. Princípios e procedimentos de construção naval

   Neste trabalho problematizam-se, com base no Livro da Fabrica das Naos de Fernando Oliveira, os princípios e procedimentos da arquitectura e da carpintaria do casco de uma nau para a Carreira da Índia nos finais do século XVI.
   O texto estrutura-se em dois momentos principais.
   No primeiro capítulo faz-se um retrato síntese da vida e obra de Fernando Oliveira e procede-se à reconstrução hermenêutica do Livro da Fabrica das Naos, a partir de três eixos interpretativos: noção de sistema, recorrência ao paradigma biológico e fomento de uma ideia de progresso.
   No segundo capítulo, enuncia-se o enquadramento problemático da construção da nau da Carreira da Índia no domínio da iconografia, fontes eruditas, achados arqueológicos e modelos à escala e discute-se o projecto construtivo naquilo que são os seus parâmetros, determinados e não determinados, a montante da cadeia construtiva.

Palavras-chave: Séc XVI, Fernando Oliveira, Livro da Fabrica das Naos, construção naval, nau da Carreira da Índia.


ABSTRACT AND KEY WORDS

Title: The Livro da Fabrica das Naos from Fernando Oliveira. Principles and procedures for ship building

   In this dissertation I discuss the principles and procedures of the architecture and carpentry of the hull of a nau for the India Route at the end of the 16th century, based on Fernando Oliveira’s book: Livro da Fabrica das Naos.
   The dissertation is structured around two main chapters.
   After summing up the life and work of Fernando Oliveira, I read the Livro da Fabrica das Naos focusing on three main aspects of the author’s shipbuilding philosophy: the search for a systematical point of view, the use of a biological paradigm and the development of an idea of progress.
   In the second chapter, I analyse the theoretical bases that can provide a better understanding of the procedures for ship construction (iconography, documents, shipwrecks and scaled models) and I discuss all the stages of the building of a Portuguese Indiaman´s hull.

Key words: 16th century, Fernando Oliveira, Livro da Fabrica das Naos, shipbuilding, East-Indiaman.